Um abrigo em tempos de ________

POR @ANE.VALLS

Era metade do mês de março, os rumores da tal da pandemia mundial se aproximavam. Eu e mais o Brasil inteiro tinha energia para um ano que já tinha atravessado a maravilha do carnaval e que, portanto, devia definitivamente engrenar com as conquistas que a cada ano suamos para obter. E bom, o resto da história é de cada um e cada uma e ao mesmo tempo, completamente coletivo. O Brasil freiou. Se freasse ainda estava bem, o Brasil desceu ladeira abaixo (e não para).

Bem, este texto não é sobre a vida diária que nos é o Brasil por meses, nem sobre as tragédias e descrenças que, de novo, vivemos no terreno do individual e do coletivo, com as milhares de mortes que se anunciam dia após dia. Esse texto é sobre um respiro de vida que a arte foi capaz de me dar em meio a tudo isso. Esse texto é um depoimento. Esse texto é sobre meu encontro com algo que ainda me faz vibrar. Encontrar algo que ainda faz emocionar já é uma espécie de fé.

Toda a minha memória caminha agora. Impedidos de caminhar com liberdade pelas ruas, refaço caminhos outros. Escrevo agora para chegar em outro lugar. Passado o primeiro mês letárgico da quarentena, de pura resistência emocional minha, de dias de monotonia e outros de tentativa de inauguração de um novo comportamento, novos pequenos gestos ou dinâmicas que me conduziam para um fora aqui-agora, encontrei um post no lugar onde mais andamos atualmente: a internet. Era uma chamada para aulas online, alguém postava sobre curadoria. Foi o clique para eu retomar o que tinha sido suspenso: dar minhas aulas, ser professora, ter contato com alunas e alunos que fazem com o que eu me sinta viva. E viva porque há partilha. E a partilha me fazia uma falta brutal.

Revisitei as aulas que já tinham sido elaboradas em outros tempos. Me interesso em falar sobre mulheres artistas há algum tempo, suas produções, suas histórias, seus interesses.  Louise Bourgeois é uma das figuras com quem me identifico, pela biografia, pelos temas artísticos, pela teimosia repetitiva e sempre inédita, de alguém que exorciza suas emoções pela arte. Essa aula existe como oficina, com exercícios que intercalam a verborragia que normalmente se abre quando professores desatam a expor ideias. Convoquei Louise, ela tinha me ajudado a encontrar meu tom, ela me ajudaria de novo. Arte contemporânea: uma vida não chega.

Louise, Lygia, Marina, Frida, outros nomes que me tiram do limbo eterno. Semanas acompanhada de mulheres que admiro, que tenho um episódio e outro de intimidade e de memórias afetuosas. Dias acompanhada de dezenas de pessoas que entregam seu tempo (às vezes duas, às vezes três, às vezes várias horas) para ficar no refúgio comum da arte, onde eu tinha conseguido encontrar um pouco de fôlego para os dias tão incertos e duros. As aulas tornaram- se meu abrigo poético.

Nessa dinâmica de tomar emprestado a poética da artista e propor exercícios que buscam nos pôr em contato com emoções, memórias, afetos, fragmentos de si, encontrei um tesouro. Uma riqueza composta por alguma conexão que podia se estabelecer no entre: entre aqui em casa e os outros lares que vinham pra aula, entre eu e a turma, entre cada uma e cada um consigo mesmo e, algo que eu vinha evitando, entre eu e eu mesma. E aqui eu não quero romantizar o ensino a distância, vou sempre elevar minha voz para defender a modalidade tradicional de ensino presencial com toda a capacidade que só ela é capaz de desenvolver em toda sua complexidade em uma educação que, também defendo, deve ser pública, gratuita e de qualidade.

Quero dividir sobre o impacto do que posso fazer agora, perceba, não vou afirmar que é o que sei fazer, é o que eu posso fazer em meio a essa desgraça de pandemia. Os exercícios me endereçam a outras leituras possíveis, outros contatos com outras e outros, permitem contatos com um bocado de gente que mora em lugares do país que nunca estive, e outros ainda no exterior. Proponho desenhos, movimentos, jogos de reflexos de espelho, silêncios, observações, um jogo criativo que nos guie em labirintos autobiográficos. Nada mais seguro do que fazer isso ancorada em artistas cujo programa estético-artístico é também um campo de experiência pessoal e afetiva. O empréstimo que as artistas me dão é pago em rede, pela produção que fazemos em trama, na (re)significação de sentidos e criação de mundos a partir dos exercícios. Recebi mais de 100 cartas em um dos exercícios que proponho com Lygia. Logo eu, amante de cartas desde a pré-adolescência, digam minhas amigas e colegas de aula que recebiam um calhamaço semanal datilografado na máquina de minha mãe. Reviver lugares comuns. A quarentena se torna um momento de reparar na poeira da vida. Escritas-leituras de si, escritas-leituras do outro e o jogo dialético vivo e mutante.

A arte passa a ser meu cotidiano no isolamento. Buscar as marcas, os rastros que os corpos deixam nos textos, que os textos deixam nos corpos, que a arte deixa na vida e que a vida deixa na arte. Mergulhar nos arquivos e obras, sempre em direção a, nunca um ponto de chegada. Encarar as séries em suas possibilidades infinitas de religar seus fios soltos, a obra de arte como esse espaço cheio de frestas, fendas, fissuras e numa possibilidade de deriva de cada um e cada uma. O que estamos vivendo também está atropelando o modelo da continuidade (não que o contínuo seja o ideal) e me parece que o contato consigo mesma(o) nesse tempo possibilita a montagem de tempos diferentes, a produção de diferentes eus dentro de um eu.

Obrigada Louise, a arte é realmente uma garantia de sanidade. Obrigada a esse oceano de afetos de participantes, que é correnteza forte de vivacidade, razão pela qual eu sigo.

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No dia 13 e 14 de junho de 2020 a Anelise e a Mirella Maria, ministrarão duas aulas online super bacanas.
Dia 13 teremos a Aula Online Poéticas do Feminismo, o olhar de Lorna Simpson, quem contribuirá neste encontro será Mirella Maria.

 

 

Mirella Maria é Artista Visual, Pesquisadora e Professora. Formada em Artes Visuais, com Mestrado na Linha de Arte Educação, ambas pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Sua pesquisa vai ao debate de gênero, questões étnico-raciais e processos artísticos. Realiza formações e cursos nas temáticas citadas e atualmente compõe o grupo, artistas na BIENAL do Mercosul 2020, como artista convidada.

Já no dia 14, teremos a Aula Online Frida Kahlo, a força inventiva de si, ministrada pela Anelise Valls.

 

 

A Anelise Valls é porto-alegrense, sagitariana, dona de um casal de gatos, doutoranda em Artes Visuais na UFRGS e se dedica a estudar temas sobre arte contemporânea e feminismos. Coordena grupos de estudos sobre Feminismos e História da Arte. É professora de História da Arte no Atelier Livre e coordenadora educativa na Casa Baka.

Para mais informações dos eventos acesse: https://linktr.ee/anevalls e nós, juntos com a Anelise, estamos disponibilizando um cupom de desconto para a compra do Combo das aulas. Para validação, mande uma mensagem no Instagram da @Ane.Valls  informando o código ARTE10 e garanta seu desconto!

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